interações urbanas
-e aí, gostou?, me perguntou a vendedora de anéis de prata que fica na frente da puc. eu havia gostado, parecia o anel que havia perdido na última desgraça etílica do refeitório uma, há alguns meses. respondi que sim, meio evasiva, pensando com meus botões se aquela despesa era justificada.
- quer saber? vou levar. estou merecendo, disse, mais para mim mesma.
começo de ano difícil?, perguntou ela, olhando pra mim. respondi que sim, sem muito entusiasmo. havia acabado de voltar para são paulo, depois do pior janeiro dos últimos 27 anos.
- meu final de ano ano foi horrível, ela continuou, contando sua própria vida.
é engraçado como você pode passar um ano inteiro com uma pessoa e, de repente, ter a sensação de que não a conhece...
foi ela quem disse isso. ela. deixei minha discrição e ceticismo de lado e comecei a prestar atenção. ela falava coisas com pouca narrativa, parecia não fazer questão de ser muito clara:
mas sabe o que é que eu acho? que uma pessoa que parte pra outra assim, desse jeito, como se nada tivesse acontecido, está fingindo, se enganando. era claríssima, olhando pra mim, seus olhos claros, azuis ou verdes, muito expressivos. tive que concordar. àquela altura, já estava surpresa o suficiente, pensando em como o acaso nos proporciona encontros inusitados. e seguimos falando, eu já me sentindo mais à vontade para concordar e até falar algumas coisas, ainda que vagas.
seguimos, os relatos semelhantes. eu a ouvi falar sobre a solidão de seu reveillon, e sobre como no dia 3 de janeiro, ela levantou da cama decidia a mudar a própria vida. eu ouvia, concordando, muito mais para mim mesma, pensando nas inusitadas semelhanças. eram meias palavras, diziam muito sem dizer exatamente o quê. uns 15 minutos de conversa. nos despedimos, desejando sorte mútua. eu levei o anel, afinal, merecia. ela concordou. mas não fez desconto. nem eu pedi.
anteontem, na minha última ida à puc, passei em frente à banquinha de anéis e brincos de prata. desde o episódio, nos cumprimentamos cordialmente, um aceno e um sorriso de insuspeitada cumplicidade. anteontem, quando passei acenando, ela perguntou, eu já quase ao longe:
e aí, melhorou? parei. virei e disse que sim -o que é muito verdade- e retribuí a pergunta.
sim. não vou dizer que cem por cento. mas uns oitenta, oitenta e cinco, ela respondeu sorrindo, levando a sério.
cada dia melhor, confessei, mais em busca de cumplicidade do que para informar. sorrimos. me despedi e segui meu curso para o restaurante, pensando em como esses pequenos encontros, no meio do caos urbano que é são paulo, podem ser reconfortantes. e no fundo, acho que é isso que a gente passa a vida inteira buscando. cumplicidade. das mais insondáveis maneiras.